No primeiro dia de aula, cada aluno tinha que se levantar, em ordem alfabética, e dizer quem era. Como se chamava, se tinha irmãos, quem eram seu pai e sua mãe e o que seu pai fazia. Naquele tempo, era raro mãe fazer alguma coisa além de cuidar da casa. Só quem tinha profissão era o pai.
E o garoto disse a profissão do pai:
– Assobiador.
Foi uma gargalhada geral. A professora também riu. Depois disse:
– Não. Qual é a profissão do seu pai?
– Assobiador.
Mais gargalhadas. Foi quando o garoto descobriu que era diferente.
Que seu pai era diferente. Tinha uma profissão que nenhum outro pai tinha.
Assobiador, aquilo era profissão? A partir daquele dia, o Ademar, cujo pai era fiscal da Receita, passara a chamá-lo de Fiu Fiu.
***
Os pais dos outros tinham profissões normais. Nenhuma risível. E ele mesmo começou a desconfiar: o pai ganhava mesmo a vida como assobiador? Sabia que ele fazia shows, se apresentava em programas de auditório do rádio, às vezes ficava semanas fora de casa em excursões artísticas. Mas ganharia o suficiente para sustentar a família com aquilo, só com aquilo? Assobiando Granada e Fascinação e imitando passarinho?
***
O garoto perguntou ao pai se aquela era a sua única profissão. Assobiador. O pai disse que era. Que já trabalhara no comércio, mas como era um bom assobiador desde criança resolvera investir no seu dom. Não ganhava muito, mas dava, sim, para sustentar a família. Por quê?
– É que na escola riram de mim quando eu disse o que o senhor fazia.
O pai sorriu. Disse:
– Não é vergonha nenhuma ser filho de assobiador.
Mas quando teve que responder de novo o que seu pai fazia, o garoto disse:
– Médico.
Em outra ocasião:
– Advogado.
E começou a inventar profissões para o pai, variando de acordo com o interlocutor. Engenheiro. Contador. Dono de revendedora... Aos 18 anos, antes de levar sua primeira namorada séria para conhecer os pais, ele avisou em casa:
– Papai, para todos os efeitos, o senhor é cirurgião dentista.
E quando, durante a visita da namorada, o pai perguntou se ela não queria ouvir sua imitação de canário, pulou da cadeira e disse “Não!”
***
O pai participou de um programa de TV em cadeia nacional e foi uma sensação assobiando o Bolero de Ravel com acompanhamento de grande orquestra. Dias depois, ele encontrou na rua seu ex-colega de escola, Ademar, que exclamou:
– Fiu Fiu! Aquele na televisão não era o seu pai? Genial, cara! Genial!
E depois, como que lamentando a sua vida sem graça, disse:
– Pô, cara. Só posso imaginar como era ser filho de um assobiador, cara. Ter um assobiador em casa, um artista daqueles...
E então ele se lembrou de como, com quatro ou cinco anos, ficava ouvindo o pai assobiar. Sem saber que aquele era um pai diferente dos outros. Apenas maravilhado.
Luis Fernando Verissímo
Fonte: Donna DC § Diário Catarinense § Domingo, 19 de julho de 2009.
E o garoto disse a profissão do pai:
– Assobiador.
Foi uma gargalhada geral. A professora também riu. Depois disse:
– Não. Qual é a profissão do seu pai?
– Assobiador.
Mais gargalhadas. Foi quando o garoto descobriu que era diferente.
Que seu pai era diferente. Tinha uma profissão que nenhum outro pai tinha.
Assobiador, aquilo era profissão? A partir daquele dia, o Ademar, cujo pai era fiscal da Receita, passara a chamá-lo de Fiu Fiu.
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Os pais dos outros tinham profissões normais. Nenhuma risível. E ele mesmo começou a desconfiar: o pai ganhava mesmo a vida como assobiador? Sabia que ele fazia shows, se apresentava em programas de auditório do rádio, às vezes ficava semanas fora de casa em excursões artísticas. Mas ganharia o suficiente para sustentar a família com aquilo, só com aquilo? Assobiando Granada e Fascinação e imitando passarinho?
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O garoto perguntou ao pai se aquela era a sua única profissão. Assobiador. O pai disse que era. Que já trabalhara no comércio, mas como era um bom assobiador desde criança resolvera investir no seu dom. Não ganhava muito, mas dava, sim, para sustentar a família. Por quê?
– É que na escola riram de mim quando eu disse o que o senhor fazia.
O pai sorriu. Disse:
– Não é vergonha nenhuma ser filho de assobiador.
Mas quando teve que responder de novo o que seu pai fazia, o garoto disse:
– Médico.
Em outra ocasião:
– Advogado.
E começou a inventar profissões para o pai, variando de acordo com o interlocutor. Engenheiro. Contador. Dono de revendedora... Aos 18 anos, antes de levar sua primeira namorada séria para conhecer os pais, ele avisou em casa:
– Papai, para todos os efeitos, o senhor é cirurgião dentista.
E quando, durante a visita da namorada, o pai perguntou se ela não queria ouvir sua imitação de canário, pulou da cadeira e disse “Não!”
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O pai participou de um programa de TV em cadeia nacional e foi uma sensação assobiando o Bolero de Ravel com acompanhamento de grande orquestra. Dias depois, ele encontrou na rua seu ex-colega de escola, Ademar, que exclamou:
– Fiu Fiu! Aquele na televisão não era o seu pai? Genial, cara! Genial!
E depois, como que lamentando a sua vida sem graça, disse:
– Pô, cara. Só posso imaginar como era ser filho de um assobiador, cara. Ter um assobiador em casa, um artista daqueles...
E então ele se lembrou de como, com quatro ou cinco anos, ficava ouvindo o pai assobiar. Sem saber que aquele era um pai diferente dos outros. Apenas maravilhado.
Luis Fernando Verissímo
Fonte: Donna DC § Diário Catarinense § Domingo, 19 de julho de 2009.
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